domingo, 29 de março de 2009

Inventário
(09/04/2007)

Meu primeiro amor foi Astrid, de quem só guardei o nome.

Depois vieram Sandra, em quem bati porque me chamou de cabeção, e Vera, cujo retrato furtei.

O primeiro beijo dei em Inajá. Senti nojo de sua língua em minha boca, mas gostei de sentir seu corpo macio encostar no meu.

A primeira transa aconteceu com uma velha prostituta que me ofereceu sopa, após um jogo de futebol noturno. Eu tinha 13 anos e aprendi o que era sexo mecânico, sem prazer. O ensinamento durou mais de um ano.

A primeira namorada se chamava Mariana, com quem casei. Me deu muitas coisas: beijos gostosos, compreensão, conforto, incentivo, a primeira transa com prazer, três filhos. Mas um dia me desapontou.

Em seguida, Marias, Carlas, Joélias, Márcias, Luizas, Patrícias, Anas, Fátimas e uma dezena de outros nomes materializaram-se em minha cama, dissiparam-se em meus sonhos, delírios e fugazes desejos.

Certo dia apareceu Cristina, que transformou-se em paixão, vício, loucura e novas descobertas. Nos embolamos por 20 anos, com promessas de mais 2.980.

Aí veio a distância.

A dança de Serena
(05/04/2007)

Serena de los Anjos seguia todas as noites para a boate de um velho hotel de Montevidéu, à beira do Rio da Prata.

Vestes negras cobriam o corpo encharcado de perfume e ressaltavam o rosto empoado da mulher que dançava com suas memórias entre casais 40 a 50 anos mais novos.

Para os freqüentadores e os músicos não passava de uma louca. Por isso, não estranharam quando enxotou aos gritos o homem, que por pura comiseração, se atreveu a dar alguns passos com ela.

O que eles não sabiam é que não havia na face da terra dançarinos de tango tão bons quanto os fantasmas de Serena.

A tristeza de Cíntia
(02/04/2007)

Quando Cíntia fica triste as flores e os alimentos murcham, os pássaros se calam, as algas asfixiam os peixes, os rios param de correr, a noite chega mais rápido e a Terra submerge nas trevas.

A natureza está mais estranha hoje: a mãe de Cíntia morreu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Filhos de Gandhy

Capa publicada na segunda-feira de Carnaval, em A TARDE (23/02/2009). Ela quebra um paradigma. Nos 97 anos do jornal, nunca havia sido publicada uma capa dupla. Não lembro de outra parecida no Brasil. No entanto, nos EUA o recurso foi utilizado em vários jornais no dia em que o presidente Barack Obama foi eleito

Galope

Eu, bem novo


Clara em transe
(27/09/2003)

De repente, Clara puxa o freio do tempo. Repete duas frases, como um mantra, e sente uma boca invisível deslizar por seus lábios, pescoço, seios e coxas.

Aquela estranha oração costuma ser repetida nos momentos de tensão; duas ou três vezes nos dias de horas mortas.

As palavras secretas produzem sensações que a fazem sentir-se viva na loucura do trabalho, da solidão, do Rio de Janeiro de 2007.

terça-feira, 10 de março de 2009

A viagem de Catarina
(abril 2004)

Ao tirar o pó da estante, Catarina acabou fazendo um passeio por sua vida. Ao folhear História do cerco de Lisboa, de José Saramago , deu de cara com a primeira dedicatória que a transportou para o passado. “Espero que o lirismo do livro a acompanhe para sempre. Judith”. Judith Marques era uma antiga amiga de colégio. Elas romperam depois que Catarina começou a namorar seu atual marido e a ex-amiga criticou-a por ter um caso com um homem casado. Logo Judith, que mantinha há dez anos uma relacionamento com Antão, jornalista, comprometido, pai de três filhos.

Fechou o livro e passou para A vida de Joana D’Arc, de Érico Veríssimo. Voltou um pouco mais no tempo. Era adolescente e resolveu colecionar a obra do escritor gaúcho. Sonhava em ser uma heroína e liderar um revolução. Não leu o livro, que ainda tinha páginas grudadas.

“Nenhum som me importa / afora o som do teu nome que eu adoro./ E não me lançarei no abismo,/ e não beberei veneno,/ e não poderei apertar na têmpora o gatilho/ Afora/ o teu olhar/ nenhuma lâmina me atrai com seu brilho (...)”. Os versos de Lílitchka! , de Maiakóvski, como dedicatória da antologia de poemas russos fazem-na lembrar de Augusto, o primeiro namorado. Com ele, 20 anos mais velho, aprendeu muita coisa: transar ouvindo música clássica, fazer fricassê de carne, estudar ciências esotéricas. Mas também teve dor, muita dor, quando ele a trocou por uma de suas alunas. Prometeu não amar mais ninguém.

Promessa quebrada muitas vezes. Uma delas registrada nas páginas iniciais de Griffin e Sabine, de Nick Bantock. “É um livro mágico”, relembrou ao ler a história de amor e da troca de correspondência entre o inglês Griffin Moss e uma amiga imaginária, Sabine Strohem, artista plástica que viveria numa ilha do Pacífico. Foi um dos primeiros presentes que Catarina recebeu de Saulo, seu atual marido, que agora roncava diante da televisão.

Romances, poesias, livros de mistérios, a coleção de ficção científica do Arquivo X , de Chris Carter, marcaram sua vida. Lembrou que leu Emma, de Jane Austen, em sua viagem a Paris. E chorou quando encontrou o surrado livro de fábulas com capa de pano, utilizado por seu pai como um tranqüilizante poderoso que a colocava para dormir.

Viajou pelas prateleiras da estante e pelo passado até baixar a poeira. Pensou que deveria vasculhar mais vezes os livros e, quem sabe, reler alguns, mas o choro do filho mais novo cortou seu pensamento.

O antigo JB

Redação do Jornal do Brasil (1986)


Safári (24/03/2007)

Se fosse humano teria 140 anos. Há dias, Campeão não se movia para desespero de seu companheiro de aventuras.

David queria encontrar um jeito de fazê-lo recuperar as forças, mas não sabia como. A situação estava crítica quando o menino lembrou-se de como o basset com vira-lata chegou à sua casa. Lembrou e correu a comprar um pinto.

Ao ver o bichinho, o cachorro transformou-se. De súbito, a vida impregnou-se em seu corpo. Latindo em rouca histeria, recordou que perseguiu, matou e comeu 15 filhotes como aquele, o que lhe valeu a expulsão, a vassouradas, do sítio em que morava. Depois, o exílio na chácara do pai de seu dono atual.

Já não pensava em mais nada quando lançou-se sobre o alvo, estraçalhando-o.
Ao morrer, um semana depois, o velho cão sonhava que perseguia leões.