A vontade de aprender e participar de todas etapas de produção do jornal comunitário O Cidadão (20 mil exemplares mensais) uniu os colaboradores e voluntários do projeto e revolucionou o processo de produção e fechamento da publicação, impressa gratuitamente pela Ediouro e distribuída nas 16 comunidades do Complexo da Maré , no Rio de Janeiro.
No antigo sistema, a equipe, formada por estudantes universitários e moradores da região, enviava matérias para um jornalista profissional e só voltava a reencontrá-las quando o jornal saía da gráfica. No atual, o jornal é elaborado por 21 pessoas da comunidade que dividem os cargos e chefias dos departamentos de redação, publicidade e distribuição.
Hoje também existem três jornalistas – dois deles de O Globo – que os orientam nas reuniões de pauta, na marcação de entrevistas com autoridades e na elaboração dos textos, funcionando como consultores e não mais como editores centralizadores. Nessa experiência, todos saem ganhando.
- Nós ensinamos as técnicas e em contrapartida temos contanto com um universo bem diferente.
do que vivemos. Encontramos pessoas que sofrem com um preconceito muito grande, têm problema de auto-estima, chegam a faltar ao trabalho por causa da violência, mas não se entregam. Lutam contra tudo isso e nos dão uma lição de vida. – afirma Aydano André Motta, redator de O Globo e um dos consultores de O Cidadão.
O novo modelo de parceria também resolveu antigos problemas de periodicidade. Nos quatro últimos meses, conseguiu cumprir os prazos e aumentou o interesse dos comerciantes da Maré.
- A última edição bateu o recorde de anúncios. A regularidade da publicação motivou o comércio local e permitiu que o jornal arrecadasse R$ 1.200 no último mês – comemora Flávia Oliveira, repórter de Economia de O Globo e também consultora de O Cidadão.
História - O Cidadão foi criado em 1999 pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), ONG que visa o desenvolvimento de projetos que permitam aos 130 mil moradores da região a superação das condições de pobreza e exclusão, no Complexo da Maré, área que detém o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano da cidade.
Segundo Rosilene Matos, atual coordenadora do jornal, ele surgiu com 12 páginas em formato tablóide, após o a Ediouro, editora estabelecida em uma das comunidades do Complexo (Morro do Timbau), concordar em assumir os custos com a impressão da publicação e garantir a qualidade do produto. Além disso, o Ceasm também obteve patrocínio da Petrobrás (em torno de R$ 2.500 mensais) para levar o projeto adiante. A verba da multinacional hoje é utilizada para custar bolsas de R$ 300 para as pessoas que se dedicam em tempo integral ao jornal.
- Quando nosso grupo assumiu, decidimos que todos ganhariam a mesma quantia, independente da função que cada um ocupar – explica Rosilene.
A maior parte dos integrantes de O Cidadão participa ou participou do curso de pré-vestibular para carentes, ministrado pelo Ceasm. Seis deles estão concluindo os cursos de Comunicação, Letras e Pedagogia em universidades públicas (Uerj e UFRJ) ou na PUC-RJ, que oferece bolsas integrais.
Rosilene, que se prepara para fazer vestibular para Comunicação, teve uma motivação extra. Ela participou do Programa de Vocação Científica da Fundação Oswaldo Cruz, que recruta estudantes do 2º grau para desenvolverem projetos nas áreas de Comunicação, Física, Química e Biologia:
- Foi através do Provoc que descobri minha paixão pelo jornalismo. Estou aprendendo muito com a experiência em O Cidadão, que ajuda a mostrar as coisas boas da comunidade, mas pretendo um dia trabalhar na área de jornalismo científico – revela a coordenadora.
O primeiro jornalista a tocar o projeto do Ceasm foi André Esteves. Atualmente, ele desenvolve projetos semelhantes em outras comunidades, sem ser esquecido pela atual equipe de O Cidadão.
- Foi com ele que dei os primeiros passos. Via como ele fazia e tentava fazer parecido – diz Rosilene.
Os atuais consultores também estão conquistando a admiração do grupo. Recentemente, Flávia e Aydano obtiveram ajuda do Instituto Telemar: dois computadores foram doados para a redação, que tinha apenas dois terminais.
Formato - Para facilitar o manuseio dos leitores, O Cidadão passou de tablóide para o formato revista. Também pulou de 12 para 24 páginas, sem alterar o conteúdo. A linha editorial se mantém voltada para problemas comuns a todas as comunidades da Maré. Assuntos como preconceito entre negros e nordestinos (os dois maiores grupos populacionais do Complexo), a questão fundiária, movimentos culturais e a política social do governo Lula são reportagens de capa.
A divulgação das atividades dos grupos que desenvolvem trabalhos sociais na região também é motivo de preocupação permanente. A seção perfil é obrigatória, a cada edição, um ilustre morador como o inspetor do CIEP Samora Machel, Antônio Oliveira; o radialista da rádio comunitária Nova Maré, Sérgio Amorim; e a rezadeira Maria. A História da Maré, baseada em pesquisa feita por dois moradores sobre as mudanças ocorridas na região, é outra seção fixa.
A direção do Ceasm faz questão de realçar no site http://www.ceasm.org.br/ que o “caráter educativo de O Cidadão o transformou em material didático para as instituições de ensino do bairro”. Também chama atenção para o fato de que o jornal “com cores, fotos e textos sem erros de português, o jornal parece até produzido por alguma empresa de comunicação”.
Consultoria - A participação dos consultores Aydano André Motta, Flávia Oliveira e Carla Baiense foi vista, no início, com desconfiança pela equipe de O Cidadão. Isto porque o grupo imaginou que o trio centralizaria as atividades de produção e fechamento do jornal. No entanto, segundo Flávia, após algumas reuniões, chegou-se ao modelo atual. Ela e Aydano colaboram na parte de produção e fechamento; Carla, na elaboração do texto. Eles não são remunerados.
- Sempre defendi uma circulação mais democrática da informação. Acho interessante compartilhar o meu conhecimento, adquirido em 10 anos de O Globo, numa carreira centrada na luta contra as desigualdades sociais. A relação com O Cidadão foi complicada no início, pois havia preconceito dos dois lados. Aos poucos os problemas foram superados e hoje chegamos a conclusão que está é a melhor forma de tocar o projeto – diz Flávia, que acumula vários prêmios em sua carreira.
Flávia também alerta que os jornalistas costumamos reescrever matérias, desenhar páginas, cortar textos com o pé nas costas, mas não se preocupam em ensinar como fazer isto.
- Em O Cidadão passamos a nos preocupar com isto. Nossa rotina consiste em participar da reunião de pauta às segundas-feiras, ter os retornos das matérias por telefone, receber os textos e as páginas por e-mail e sugerir modificações. Depois disso, o material volta para o jornal e a equipe faz o fechamento. Eles aprendem com os próprios erros e acertos – explica a jornalista.
Os consultores lembram que nas primeiras edições, os voluntários colocavam ponto final em legendas e títulos, não sabiam priorizar as informações mais importantes e não tinham noção quanto ao tamanho dos textos – algumas matérias tinham mais de nove laudas.
- Tudo está sendo superado. Além disso, a qualidade do texto deles surpreendeu. Eles escrevem direito – afirma Flávia, que defende a “exportação” da experiência para outras comunidades como forma de democratizar os acessos à informação.
Entusiasmado, Aydano ressalta o potencial econômico do jornal comunitário:
- São 130 mil leitores, pelo menos 60 mil são consumidores de baixa renda. É um mercado para se conhecer. Os empresários esquecem que algumas áreas da cidade como o Saara (Centro) e o Mercado de Madureira movimentam milhares de reais com este tipo de consumidor. É possível uma rede de comunicação nas comunidades carentes, feitas por pessoas da região. A integração dessas áreas permite a melhoria de vida e o combate à criminalidade – defende.
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