Trabalho em jornais desde 1980 e me transformei em editor em O Dia (RJ) em 1993. Já apurei e acompanhei muitas tragédias, inclusive vividas por jornalistas. Em 1997, por exemplo, testemunhei uma editora de A Notícia, que fazia parte do grupo O Dia, reconhecer na foto de um corpo carbonizado o próprio irmão, um agente da polícia federal morto por traficantes.
A frequência de fatos lastimáveis me fez desenvolver uma espécie de mecanismo de proteção, no qual me distancio ao máximo da tragédia para que a emoção não atrapalhe a realização do trabalho.
Ontem, o sistema de isolamento falhou e editei a primeira página de A TARDE revoltado e muito triste. Explico. No Dia da Consciência Negra, em Salvador, mesmo não sendo feriado, entidades do movimento negro marcham lembrando a morte de Zumbi dos Palmares, reivindicando igualdade racial e protestando contra a violência que dizima os jovens. Ao mesmo tempo, exibem com orgulho suas origens.
Preparava uma página que abria com a manchete sobre os investimentos que a Ford fará no Brasil e na Bahia, a partir da prorrogação por cinco anos da isenção de impostos federais. Isso permite que ela deixe de recolher aos cofres públicos R$ 800 milhões anuais. No final das contas, quem paga para a multinacional crescer somos nós.
Revoltei-me. Ainda mais quando vi a foto da cerimônia em que Lula anunciava as medidas. Só havia brancos no palco. Empresários e políticos, a elite brasileira. Decidi abrir a foto em cinco colunas abaixo da manchete. E sob ela, uma foto maior ainda, mostrando a marcha do movimento negro. Seria uma representação da sociedade.
No entanto, um comentário do designer da 1ª página, Vado Alves, sobre a foto que acabara de entrar na página de Últimas Notícias me chamou a atenção. Ele disse: "Acho que estou ficando velho, não suporto mais ver isso".
Quando olhei para a imagem de um pai que amparava o filho morto por traficantes, desabei. Fiquei sem voz, as lágrimas vieram nos olhos. Detalhe: ele ficou nessa posição por quase cinco horas, esperando o rabecão.
Pouco antes, acabara de ouvir o depoimento da repórter Cleidiana Ramos, na qual ela descrevia que uma líder comunitária e religiosa negra, em discurso na Praça Castro Alves, se dirigiu ao governador Jaques Wagner, pedindo para que se desse um basta ao massacre de jovens vítimas da violência. Lula estava ao lado deles.
Me ocorreu a celeridade para garantir benefícios para a elite não é a mesma para resolver sérios problema, que tem como maioria das vítimas pessoas das classes menos favorecidas.
Lembrei também de meu filho e de como o amo.
E imaginei toda a dor que o pai que acalentava o rapaz morto sofria ali e sofrerá por toda a vida.
Rsolvi mudar a primeira página. Tirei a foto de Lula e da elite empresarial e política, com raiva. Eles não mereceriam o destaque, aparecendo como os bons capitalistas, que se preocupam com o desenvolvimento do País.
Mantive a da marcha da igualdade e a do rapaz morto na periferia. Elas resumiriam melhor a realidade das ruas - acreditei.
Agora, pela manhã, tenho sérias dúvidas se essa foi a decisão correta. Se a a manutenção da foto do presidente que concedia renúncia fiscal para uma multinacional fazer o que deveria ser feito com o dinheiro dela não teria um impacto maior de denúncia.
Só tenho uma certeza: a emoção interferiu no meu trabalho. Interferiu muito.
GJOL em casa nova
Há 11 anos